Carta


Carta ao cliente
Essa é uma carta que um renomado arquiteto brasileiro fez para ilustrar o valor que um projeto tem.  É longa, mas demonstra de forma prática e bem clara a necessidade de contratar um arquiteto para projetar um empreendimento.

Confesso que não me assustei muito ao ler sua carta contando o resultado da conferência para autorização de um projeto para o São Lucas. Estas coisas acontecem sempre porque, por falta de costume, quem constrói, nem sempre avalia o plano de como deveria fazê-lo.

Se eu insisto em aconselhá-lo mais uma vez para que consiga um arquiteto para dirigir os trabalhos de seu hospital, não é somente porque desejo muito trabalhar para um hospital modelo, mas porque, e principalmente porque, não posso crer que uma obra, da importância da sua, possa nascer sem estudo prévio.

É vezo brasileiro fazer as coisas sem plano inicial perfeitamente elaborado; quando se pergunta sobre como ficarão estes e aqueles pormenores, a resposta é sempre a mesma: Ah! Isso depois, na hora, veremos. Assim fazem-se as casas, os prédios, as cidades; nesse empirismo vive a lavoura, a indústria e o próprio governo.

O planejamento, mercadoria altamente valorizada em todo mundo para qualquer realização, não encontrará entre nós o ambiente propício enquanto nós moços não nos capacitarmos da sua necessidade imprescindível.

Poderia continuar conversando com você sobre a grande vantagem de planejar com antecedência, até amanhã, sem esgotar todos os argumentos e provavelmente terminaria por dizer que é até demonstração de patriotismo e inteligência.

Mas com isso não convenceríamos ninguém; talvez muito mais vantajoso seria confinar a discussão entre os limites das vantagens particulares, individuais de aplicar o método. Então vejamos. A pergunta é sempre a mesma; -”que vantagem poderíamos ter em gastar CR$ 65.000,00 em um projeto somente? O projeto não é o prédio; muito pelo contrário, somente uma despesa a mais! Contratando a construção o projeto viria de graça, feito pelo próprio construtor e nós economizaríamos 5% sobre o valor do prédio. Com esses 5%, no caso de querermos gastá-lo, até poderíamos melhorar algumas condições do edifício; enriquecer alguns materiais etc…”

Garanto que os argumentos acima lhe foram expostos mais de uma vez. São os que sempre vejo empregados em ocasiões dessas e nunca mudam. São também os mais fáceis de rebater e os menos inteligentes.

Senão vejamos: “…O projeto sempre custa alguma coisa. O construtor que o fizer terá, sem dúvida que empregar engenheiros e desenhistas para isso. Terá de empregar gente para calcular concreto, para calcular aquecimento, eletricidade, etc… O construtor cobrará essa despesa do proprietário através da comissão para a construção. Tanto isso é verdade que, se você apresentar aos construtores um projeto completamente pronto, ele cobrará percentagem menor para a construção porque dirá, “não terei despesas no escritório”. Suponhamos que a taxa de honorários para a construção seja de 10 a 12%, inclusive o projeto. Se você der o projeto, encontrará quem lhe faça por 6 ou 8%. Daí você conclui que o projeto que você pagou ao arquiteto 5%, já representa nessa ocasião somente 1% ou 2% a mais do que o preço geralmente previsto.

Mas eu desejo provar que o plano geral, feito com antecedência, é economia e não despesa.

Então vamos continuar. Ninguém pode negar, nenhum construtor, nenhum cliente, que o projeto feito pelo técnico, contém em si uma previsão maior dos diversos detalhes do que o projeto rabiscado pelo construtor e verificado pelo proprietário. Faça uma experiência. Tome um plano que esteja em início de construção e pergunte a quem o dirige: por onde passam os canos de aquecimento? Por onde passam os canos de esgoto? O senhor vai fazer antes isso ou aquilo? Garanto que não sabem.

Responderão: “provavelmente passarão por aqui ou ali, farei isto ou aquilo antes. Se na ocasião de executar um serviço, verificar-se um contratempo qualquer, um cano que não pode passar porque tem uma porta, um esgoto vai ficar aparecendo no andar de baixo; o construtor resolve em função do problema, no momento. Ele dá voltas com o cano ou faz um forro falso para esconder o esgoto que iria aparecer em baixo. Entretanto se isso tivesse sido previsto, não precisaria de forro falso ou qualquer outra coisa. No papel, teria sido procurada e encontrada a solução mais econômica, para o caso, a mais bonita.

Consulte um construtor experimentado ou alguém que já tenha construído e todos serão unânimes em contar-lhe pequenas calamidades que apareceram. Eu já ouvi diversas vezes, por exemplo: “Quando colocamos as fundações no terreno nós vimos que o quarto ficaria enterrado. Então levantamos as fundações mais cinqüenta centímetros para dar certo. Por isso deu uma escada na entrada e ficou com um porão, etc… Se você calcular quanto mais caro ficou a imprevisão, você verá a vantagem de ter um projeto estudado. O arquiteto teria dado uma disposição diferente nos cômodos de maneira que o tal quarto não ficasse enterrado, sem ter que aumentar as fundações e assim economizaria o dinheiro com o qual se faria pagar.

Se o proprietário não ganhasse nada, ainda teria para si uma solução melhor e um motivo para valorizar seu imóvel. O construtor por exemplo não projetaria as instalações elétricas.

Ele chamaria um instalador “prático” e o homem disporia a coisa à sua vontade. Usaria os canos que ele quisesse e os fios que achasse melhores. Bem curioso, não é ? Poucos entendem disso e ninguém iria fiscalizar o homem. Acontece, porém que os fios, quando são fios demais em relação à corrente que transportam, dão muitas perdas, e essas se traduzem em despesa mensal maior de energia para você durante os 50 ou 100 anos de funcionamento do hospital; assim você pagaria 100 vezes um bom projeto de distribuição de eletricidade.

Estou apenas repetindo casos cotidianos.

Do funcionamento do hospital ainda mais, o construtor provavelmente não entende e nem terá tempo suficiente para estudar. Ele não é especializado em hospitais porque isto é Brasil e depois não estudam porque não é o seu métier. Ora, assim sendo, ele vai confiar em você. Você conhece hospitais já feitos e em funcionamento, como hospitais, não como construções. Os seus preconceitos, a respeito, o construtor repetirá com o dinheiro de seu bolso. As soluções que, para alguns casos que você viu, são soluções econômicas poderão constituir soluções caríssimas, no seu caso. Rematando, sua casa de saúde não teria o melhor aspecto porque faltou um artista.

Arquitetura, é construção e arte. Arte. Arte não tem livro de regulamento que ensine. Nasce dentro de cada um e desenvolve-se como conjunto de experiências. Procure um homem que possa das à sua casa de saúde, além das características de um hospital eficiente pelo perfeito planejamento das diversas sessões, um valor artístico indiscutível.

O valor artístico é um valor perene, enorme, inestimável. É um valor sem preço e sem desgaste. Pelo contrário, aumenta com os anos à proporção que os homens se educam para reconhecê-lo. O valor artístico subsiste até nas ruínas. Os anos correm e desgastam o material, enquanto valorizam o espiritual.

Com a consciência limpa termino minha proposta. Está em suas mãos a responsabilidade de decidir entre os caminhos. De um lado eu me coloco, não só, mas como representante dos arquitetos brasileiros, defendendo a economia, a ordem e acima de tudo, o futuro. De outro lado, o empirismo, a reação, a imprevisão.

Qualquer solução que você venha a dar não mudará as relações entre nós, nem sua opinião futura sobre o que acabo de escrever. Se o prédio for bom, bem projetado, bem planejado, por um bom arquiteto, você gostará, todos gostarão; se ele não prestar, se custar muito, se não funcionar, ser for feio ou sem personalidade, sem valor artístico, sem plano nenhum, o resultado será o mesmo. Em todos os dois casos você adquirirá experiência e acabará por trabalhar sempre do meu lado e com os meus argumentos. Nós venceremos sempre como eu queria demonstrar.

Pague pois o que eu pedi. É pouco em relação às vantagens futuras. Ou não pague, e as vantagens serão as mesmas, para a sociedade evidentemente, não para você.

Com um abraço afetuoso do amigo certo,

Vilanova Artigas

São Paulo, julho de 1945

Carta retirada do livro Vilanova Artigas Série Arquitetos Brasileiros, paginas 49, 51 e 52

Biografia - João Batista Vilanova Artigas (Curitiba PR 1915 - São Paulo SP 1985). Arquiteto, engenheiro, urbanista, professor. Participa, em 1948, da criação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU/USP. Em 1961, realiza uma seqüência notável de projetos que definem as linhas mestras do que se chama de "Escola Paulista": o Anhembi Tênis Clube, a Garagem de Barcos do Iate Clube Santa Paula, e o edifício da FAU/USP, na Cidade Universitária, todos em São Paulo. Após o golpe militar de 1964, é preso e, logo em seguida é exilado. Retorna à FAU/USP em 1967, e profere uma aula inaugural em rejeição à luta armada, intitulada O Desenho. É um dos mais importantes arquitetos brasileiros, tendo recebido da "Union Internationale des Architectes" - UIA os prêmios Jean Tschumi, 1972, por sua contribuição ao ensino de arquitetura, e Auguste Perret, 1985, por sua obra construída.

Anhembi Tenis Clube
Garagem de Barcos
Edifício FAU-USP